Namíbia

As pinturas rupestres de Twyfelfontein, na Namíbia

Há menos de um século desde sua descoberta, Twyfelfontein, importante sítio arqueológico da Namíbia, possui pinturas rupestres que datam 6 mil anos; o turismo responsável garante sua preservação.

A caminho de Twyfelfontein

— Rafa, tente acelerar mais. Talvez mais rápido o carro não trepide tanto —, disse-me Rafael Leick para tentar encontrar uma solução para aquele complicado trecho de estrada de terra. Leick estava certo, pisando um pouco mais no acelerador o problema foi resolvido. Poupamos boas horas de viagem pulando de 30km/h para 90km/h. O chão era tão ondulado que qualquer marcha acima de segunda já ferrava o carro. Passamos um bom tempo indo devagar, quase parando. A solução era mesmo ir rápido, de maneira que não houvesse tempo do veículo descer entre as pequenas valas da estrada. Custamos perceber isso.

Estávamos num lugar remoto da Namíbia, em alguma estradinha da região Noroeste do país africano. Nosso Toyota SUV 4×2 facilitava a jornada em meio à pradaria namibiana. Em alguma montanha, não muito distante dali, estava o ponto culminante do país: o monte Brandberg, o teto da Namíbia, atingindo os 2.573 metros de altitude. Mas não fomos para lá para subir essa montanha, não dessa vez. Nosso objetivo era ver as pinturas rupestres da região de Kunene, chamada de Twyfelfontein, o mais importante sítio arqueológico do país e um dos maiores da África.

A caminho de Twyfelfontein

Nos encontrávamos a mais de 600km da capital da Namíbia, Windhoek, e a menos de 450km de Calueque, fronteira com Angola. A paisagem a caminho das pinturas milenares era interessante, diferente aos nossos olhos: grandes montanhas avermelhadas e de pouca vegetação surgiam às margens da estrada (a maioria delas com enormes platôs). O cenário lembrava um pouco o Grand Canyon, nos Estados Unidos, embora fosse bem diferente de um cânion, mas as cores e as mesas rochosas faziam a comparação ser inevitável. Em alguns trechos, as elevações se afastavam e davam lugar ao horizonte infinito, onde até mesmo o caminho se perdia de vista. Tudo era deserto, árido e selvagem.

Andamos algumas centenas de quilômetros diante essas paisagens. E, às vezes, nos deparávamos com cruzamentos de rodovias, que mais pareciam uma simples rua de terra – uma desatenção poderia custar horas de desvio, ou até mesmo um dia de viagem perdido, mas havia quase sempre um postinho de gasolina nessas interseções de rotas. Sabendo disso, tínhamos tarefas bem definidas: enquanto um dirigia, o outro ficava de olho no mapa, limpava as lentes das câmeras, controlava a playlist e escolhia o sabor do salgadinho. Revezávamos o volante a cada 200 ou 300 quilômetros.

A satisfação de andar por aquelas terras inóspitas explodia no peito. Com certa frequência nos sentíamos obrigados a descer do carro para colocar os pés no chão e contemplar a paisagem – não deixávamos a embalagem de metal do veículo nos tirar da realidade. Chegávamos a ficar dez, vinte minutos de olho na vastidão, principalmente quando atingíamos algum ponto alto da estrada, onde dava para admirar dezenas de quilômetros à frente.

No porta-malas do carro havia tudo o que a gente precisava: barracas de camping, galões de água, comida, fogareiro, kit de primeiros socorros e nossas mochilas; na frente, além de dois brasileiros tapados, tinha um tocador de mp3, um mapa completo da Namíbia, um gps e o volante do lado contrário (à direita), além de um aviso colossal grudado no painel do carro avisando que ali, na Namíbia, era a mão inglesa. Ou seja, tínhamos que a todo momento dirigir à esquerda na estrada.

Antílope à margem da estrada

Durante o longo trajeto, ora éramos surpreendidos com a presença de algum animal, principalmente antílopes e girafas, ora por algum integrante de alguma tribo indígena que ficava parado à margem na estrada — sabe-se lá por quê. Era difícil de acreditar que existia vida por ali, tanto de animais quanto de pessoas. Observar aqueles bichos enormes movendo-se à vontade no chão “sem vida” e debaixo um sol trevoso agigantava a sensação de estar na Namíbia. E era incrível quando eu me dava conta que estava num ponto isolado daquele continente que eu sempre sonhara conhecer.  

Depois de atravessar um bom trecho da região Noroeste do país, chegamos num camping quase na hora do pôr do sol. Foi o tempo de armar as barracas para a noite cair. O lugar era simples, mas possuía tudo o que era importante para aquele momento: água para banho, um bar com cerveja quase gelada e, principalmente, um chão seguro para dormir.

 

Os pontos turísticos da Namíbia estão espalhados pelos país, fato que dificulta a logística para poder conhecer todos os destinos interessantes. Sabendo disso, o viajante tem duas opções para conhecer os locais: contratar agência na capital, que inclui transporte e hospedagem em lodges (entenda-se hotéis “selvagens” de considerável luxo), ou alugar carro para fazer tudo por conta própria, podendo ficar em camping, se preferir.

 

Acordei com um besouro fazendo alvoroço debaixo do piso da minha barraca. O inseto devia estar ali a noite toda, aí com o nascer do dia e com o calor do sol, fez com o cascudo causasse logo cedo. Foi meu despertador natural naquela manhã. Imediatamente falei para o Leick acordar. Nossas barracas estavam uma do lado da outra, mas na dele não havia besouro, e ele não teve qualquer oportunidade de ter um despertador insetudo. Uma sorte para poucos.

Levantamos num tiro só. Guardamos os equipamentos e comemos a maçaroca de todas as manhãs: pão de forma namibiano (bem diferente dos nossos), suco de caixinha de laranja e algumas bolachas. Partimos em seguida.

Twyfelfontein estava perto dali, chegamos ao local em menos de vinte minutos. Largamos o carro num pequeno estacionamento em meio ao deserto e seguimos em direção a uma sofisticada construção: um pequeno complexo feito de metal e bioconstrução. Demos de cara com uma lojinha (dessas que vemos em pontos turísticos) e logo nos deparamos com o balcão de entrada. Compramos ali o ingresso e, em poucos minutos, recebemos a companhia de uma simpática funcionária que nos acompanharia ao longo da visitação. A entrada custou N$ 60 por pessoa, mais N$ 20 de estacionamento.

O caminho para se chegar às pinturas rupestres era fácil. Não bateu vinte minutos de caminhada e logo nos deparamos com as primeiras obras de arte a céu aberto. A explicação era feita em inglês, mas muito do que víamos ali dispensava comentários: os desenhos eram facilmente identificados. E era impressionante.

Twyfelfontein
Twyfelfontein, Namíbia

 

A necessidade de registrar momentos não é de hoje. E parece ser inerente ao ser humano – ainda mais na era digital, onde tudo é registrado em redes sociais. Mas, antigamente, o registro era feito em pedras. Daí surgiu a pintura rupestre.

 

“Twyfelfontein, que se pronuncia “two-é-fel-fountein”, existe há mais de 6 mil anos”, explica a guia turística. “E esse nome difícil de falar significa “Primavera Incerta”. E, num pedaço de papel, a prestativa funcionária do sítio arqueológico mostra como o lugar é conhecido entre eles (grupo étnico Damara): /Ui-//Ais, uma grafia curiosa, cujo significado é “Cercado por Rochas”.

Entre pequenas pausas, nos é explicado que ali, primeiramente, foi habitado por caçadores-coletores (4.000 a.C.) e, posteriormente, por pastores de Khoikhoi (500 a.C.) – ambas etnias usavam aquele pedaço de terra para realizar rituais xamânicos. O resultado foi a criação de mais de 5.000 registros, tanto de esculturas quanto de pinturas rupestres.

O primeiro grupo a passar por Twyfelfontein foi o responsável pela maioria das pinturas nas rochas. E, de acordo com nossa guia, a diferença na arte é grande “Cada etnia possuía uma identidade e uma técnica distinta, então as gravuras de 6 mil anos podem ser claramente distinguidas das mais novas”, explicou.

A exemplo de importantes sítios arqueólogos, Twyfelfontein também foi descoberto no século 20, mais precisamente em 1921 pelo geólogo alemão Reinhard Maack. Ou seja, não faz um século que as pinturas rupestres do local foram descobertas pelo homem moderno.

Somente em 1947 que o lugar foi visto de forma mais atenta. David Levin, um dos colonizadores da Namíbia, tentou viver no lugar com a sua família e seu rebanho. Chegou a comprar terras, mas não teve sucesso com a captação de água, mas Twyfelfontein nasceu com ele — uma região que anteriormente era conhecida como Damaraland.

Casa onde viveu David Levin

 

No início do século XX, entre 1904 e 1908, quando o país africano ainda era colônia da Alemanha, soldados chacinaram mais de 75 mil dos povos Herero e Nama, sendo considerado o primeiro genocídio do século XX. Em 2016, o governo alemão reconheceu o massacre, mas ainda não há registros de desculpas.

             

Na década de 1980, antes do lugar se tornar um ponto turístico, algumas pinturas foram danificadas, outras até mesmo “criadas” como ato de vandalismo. A solução definitiva foi abrir à visitação, e o resultado foi a implementação do turismo responsável, que contribui até hoje com a preservação das pinturas, além de ajudar as comunidades locais.

 A terra seca de Twyfelfontein já não vê água há algum tempo. E, quando chove, a água corre montanha abaixo e se perde nos vales. E num desses vales é onde o tour acontece, numa encosta de montanha, entre mesas de arenito, local onde é possível avistar centenas de pinturas, mas todas as artes estão espalhadas a céu aberto pelas mais de 200 lajes que compõem a região, ou seja, nossa andança é apenas uma pequena amostra da riqueza que o lugar guarda. Mas é suficiente para ver de perto as impressionantes pinturas.

“As rochas de arenito são cobertas pelo verniz do deserto, uma espécie de oxidação que deixa as rochas mais escuras; as gravações foram feitas através da raspagem dessa camada, expondo a rocha mais clara”, diz a guia.

São abundantes os desenhos cravados nas rochas, sobretudo com imagens de animais e seres humanos, mas há em Twyfelfontein três tipos de diferentes gravuras: 1) as imagens icônicas, que são essas que representam animais e pessoas; 2) pictogramas, que correspondem as artes geométricas; 3) ranhuras, onde demonstravam tabuleiros de jogos, por exemplo.

A maioria das pinturas representa animais, como girafas, zebras, rinocerontes, elefantes, avestruzes, leões e diversos antílopes, bem como representações humanas. E, no meio de tantas figuras, uma chama mais a atenção, se trata da representação do “homem-leão”. “Este leão com uma longa cauda retangular termina com uma mão de seis dedos e descreve a transformação dos seres humanos em animais”, diz a funcionária do sítio arqueológico. “Essa é uma das evidências que este lugar tenha sido um grande local onde se praticava rituais xamânicos.”

Pinturas rupestres de Twyfelfountein
Pinturas rupestres de Twyfelfountein

Entre uma pausa e outra, perguntei para a guia se havia alguma pintura de discos voadores, mas recebi a frustrante resposta que não havia nada que representasse aparições extraterrestres. “Não há nada sobrenatural aqui, mas há gravuras de animais que nunca viveram nessas terras, como leão-marinho, pinguins e flamingos”, diz ela com um leve sorriso, e ainda acrescenta: “Esses animais indicam que os caçadores-coletores tinham contato com a costa” conclui a guia, referindo-se ao oceano Atlântico localizado a mais de 100km dali.

Em meio à complexidade de informação sobre as origens das pinturas, desde os primeiros milênios até os tempos atuais, vários fatores são particularmente únicos de Twyfelfontein: a maneira como as pinturas foram feitas, o tipo de pedra, os animais, os povos antigos. Tudo compõe uma receita perfeita para uma visitação imperdível.

Enquanto dávamos a gorjeta para a nossa guia — única fonte de renda dos funcionários do sítio arqueológico — caminhávamos sentido ao estacionamento. À minha volta, um lugar que possivelmente nunca iria voltar. Tentei registrar o tour inteiro, principalmente na memória, já que sou um apaixonado por ruínas e locais onde passado possui algo incrível a ser contado.

Rafael Leick e eu, durante o tour

 

Já dentro do carro, o destino era Skeleton Coast (Parque Nacional da Costa do Esqueleto), onde passaríamos por mais desertos e veríamos o oceano Atlântico do lado oposto. E, para chegar até lá, sabíamos de apenas uma coisa: teríamos que pisar fundo. 

 

Como chegar a Twyfelfontein

Twyfelfontein está localizado a 600km da capital Windhoek. E, para chegar ao sítio arqueológico, é necessário ir até Khorixas. É indicado comprar um mapa da Namíbia (é facilmente encontrado no aeroporto), além disso o uso do GPS é indispensável.

Saia na C39, 73 quilômetros a oeste de Khorixas, vire rumo ao sul na D3254 e siga por 15 quilômetros até uma curva à direita sinalizada como Twyfelfontein. 

 

O que você precisa saber 

  • O ingresso custa N$ 60 por pessoa, mais N$ 20 de estacionamento;
  • Na maioria dos lugares só aceita dinheiro vivo;
  • Chips de celular podem ser comprados na capital;
  • Para uma viagem mais roots, tem que levar barraca;
  • Não é aconselhável dirigir à noite (alguns campings não deixam entrar após às 22h)
  • Carros 4×2 ou 4×4 são sempre as melhores opções;
  • É aconselhável alugar carro com antecedência (e reservar com as agências também);
  • Dá pra contratar agência na capital, mas sai bem mais caro (e a viagem se torna mais engessada);
  • A CNH pode ser a mesma que utilizamos no Brasil (não precisa da internacional);
  • Para entrar na Namíbia não é necessário visto;
  • Vacina contra a Febre Amarela é obrigatória. 

 

Vídeo

Rafael Kosoniscs

Sou jornalista e publicitário, tenho 36 anos e viajo de mochila nas costas há 12 invernos. Tenho a mochilagem e o montanhismo como paixões. Vou publicar meu primeiro livro este ano – e você já está convidado(a) para o lançamento. Fique de olhos nas redes para não perder, ok? Siga: @seumochilao | @rafaelkosoniscs

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