Crônica Peru

Vá gritar em seu país

Eu só queria descansar. Mesmo depois de ter feito uma trilha de horas entre Aguas Calientes e a Hidroelétrica embaixo de uma chuva gelada e ter esperado muito tempo a nossa van chegar, já imaginava que com os solavancos da estrada acidentada até Cusco, seria complicado pregar os olhos.

Para piorar, nos sentamos na frente de um menino de olhos claros e sotaque da Austrália que não parava de falar um minuto. Até o apelidamos de Draco Malfoy, porque além de rápido, falava alto e tinha algo de querer aparecer.

Estávamos na metade da van, na nossa frente havia um casal de gringos que não sei até hoje identificar a nacionalidade, provavelmente europeus. Uma moça loura bonita e esguia, com roupas da Nike e jaqueta da The North Face. Estava acompanhada pelo namorado, um rapaz bem parecido com ela, numa versão masculina. A menina deitou o encosto do banco até bater nos meus joelhos, algo não lá muito difícil de acontecer, dada a minha altura de quase um metro e setenta e cinco. O que me deixou irritada não foi nem a constatação de que iria ficar as próximas horas abarrotada, mas sim, o olhar com que essa moça me encarou, como se a culpa do banco não poder descer mais fosse minha! Eu ainda lhe ofereci uma risadinha amarelada e soltei um “Sorry”. Ela apenas se virou e disse para o namorado:

— Eu falei que deveríamos ter ido e voltado de trem!

Ele balbuciou alguma coisa e a Van foi saindo.

Na primeira fileira do veículo, estava um casal de Espanhóis que parecia ter saído de um filme do Almodóvar, o homem gesticulava muito e ria de tudo e a moça, mais passiva, tentava conter a euforia do marido. Nos últimos bancos, haviam americanos e provavelmente mais europeus.

“Essa vai ser uma longa viagem”, pensei comigo mesma. Sem conseguir mexer a perna e também dormir, aproveitei o caminho para prestar atenção na paisagem peruana. Eu sempre digo que é muito ruim perder tanto tempo viajando por terra, mas sou apaixonada por road trips. A gente consegue sentir o lugar, o cheiro e imaginar as histórias que já passaram por ali.

Perto da Hidroelétrica, local de nossa partida, há uma cidadezinha na qual na ida, paramos para almoçar. Dessa vez não houve necessidade de parada, mas o motorista estacionou para trocar algumas palavras com alguém muito especial e cujo rosto nunca vou esquecer.

Vá gritar em seu país

Uma menina de vestido cor de rosa e duas tranças no cabelo, magra e com feições andinas. Deveria ter por volta de 8 anos. Tudo foi muito rápido e mesmo assim, lá estava a moça loura reclamando novamente:

— Assim vamos chegar em Cusco amanhã!

O motor foi ligado e a van avançou.

— Tchau papai! Cuidado na estrada – gritava a menina enquanto corria perto do veículo.

— Adeus “mi hija querida”, volto logo! Cuide da mamãe por mim! – respondeu o motorista enquanto avançava.

Vi seus olhos pelo retrovisor interno, procurando o perfil da filha que continuava acenando enquanto íamos. Ele fez o sinal da cruz e pegou a estrada.

Seguimos.

É um caminho perigosamente bonito para chegar da Hidroelétrica até Cusco. Passam-se por desfiladeiros mais horripilantes do que montanhas russas, porém há a visão de montanhas tão altas que parecem esculpidas, imponentes com seus cumes cheios de gelo.

Esse é um dos caminhos para se chegar ou voltar de Aguas Calientes, cidade que dá acesso a Macchu Picchu, uma das principais atrações turísticas do Peru e também capital do antigo Império Inca. Há quem faça o percurso inteiro de trilha, ou ainda quem prefira apostar em ir de trem, com conforto e mais luxo. Nós não tínhamos tempo para trilha e grana para o trem, então optamos por ir de van.

Seguimos.

 

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Apesar do Draco Matraca Malfoy e das pernas numa lata de sardinha consegui dormir e acordei meio zonza já perto da cidade. O ônibus ia por uma rodovia cercada por civilização quando a moça loura da minha frente falou em inglês:

— Motorista, pare o ônibus um pouco mais para frente, meu hotel fica aqui perto.

O motorista respondeu, claramente se esforçando para falar na mesma língua que ela:

— Senhora, sinto muito, mas não somos autorizamos a parar a Van aqui. O único ponto de parada é a Plaza de Armas, no centro de Cusco. A senhora terá que pegar um táxi…

— VOCÊ PRECISA PARAR AGORA! – interrompeu a moça.

— Mas senhora, não há nem como pararmos aqui, é ilegal – disse o motorista, agora em espanhol.

— MOTORISTA, VOCÊ ENTENDE O QUE ESTOU TE FALANDO? – disse a menina, agora em pé e com o namorado com uma feição boba no rosto – EU PRECISO DESCER AQUI. ENTENDE? PARAR. STOP, STOP.

Nesse momento, o cara espanhol que estava na frente, virou para a europeia e disse num inglês digno de negociações corporativas:

— Moça, fique tranquila, resolverei isso para você. Vou mostrar como as coisas funcionam.

Sua esposa tentou segurar seu braço antes dele levantar, mas já tarde:

— ESCUTA AQUI MOTORISTA – berrou em espanhol, agora deixando todos na Van alertas para alguma tragédia – VOCÊ NÃO ENTENDE INGLÊS? PRECISA PARAR ESSE ÔNIBUS AGORA, ESTÁ ME ENTENDENDO?

Um pouco mais nervoso, porém sem perder a compostura o motorista respondeu:

— Senhor, só posso parar na Praça, é o que sempre faço há anos e é o que vou fazer.

— QUAL É O SEU PROBLEMA COGNITIVO? – O espanhol começou a ficar vermelho e apontar o dedo na cara do motorista, que não tirava os olhos da estrada – EU PAGO O SEU SALÁRIO! VOCÊ SÓ TEM ESSE EMPREGO POR CAUSA DA GENTE, SOMOS TURISTAS! O PAÍS DE VOCÊS VIVE DISSO.

Nesse momento meu sangue latino ferveu e quando ia me levantas para rebater, minha amiga que me acompanhava me alertou sabiamente:

— Ana, fica quieta. Eu também estou com raiva, mas pensa só: somos duas meninas viajando sozinhas, não estamos no Brasil, não sabemos brigar, se segura.

Me contive.

— EU VOU TER QUE FAZER VOCÊ PARAR ESSA VAN À FORÇA? – pelo visto o cara espanhol tinha levado poucos “nãos” na vida. – ESTAMOS FAZENDO UM FAVOR PARA VOCÊ DE TER CONTRATADO O SERVIÇO DA SUA AGÊNCIA, QUE ALIÁS, LIGAREI AMANHÃ MESMO E FAREI UMA RECLAMAÇÃO SUA. COMO É MESMO SEU NOME?

O motorista deu seta. Parou a Van. Tirou o cinto de segurança e finalmente encarou o espanhol dos olhos:

— Vá gritar com os outros no seu país! – respondeu firme – Me respeite senhor, você tem todo direito de reclamar de mim, mas nunca me tratar com falta de respeito, porque eu sempre trato todos igualmente. Não é porque vem da Europa que pode falar com os outros assim.

Aí eu não me contive e soltei em português mesmo uns gritos de incentivo “é isso aí”, “mandou bem”, que ninguém deve ter entendido.

O motorista continuo, agora se dirigindo a loura que queria ficar perto do hotel:

— Moça, se quiser, desça aqui, mas eu não acho seguro.

O namorado dela abriu a porta e eles saltaram com as mochilas caras, antes de descerem agradeceram o espanhol que tinha “salvado o dia”.

Quando a porta se fechou, o motorista encarou novamente o espanhol nos olhos e todos que ainda estavam na van. Ninguém se pronunciou.

Seguimos por mais 15 minutos, no máximo.

Ali estava a Plaza de Armas, de Cusco. Nosso hostel era muito próximo, o hotel da moça europeia também não deveria estar tão longe.

O espanhol e sua esposa, que estava mega envergonhada, saíram primeiro. Todos os outros foram descendo também. Quis que eu e minha amiga ficássemos por último, éramos as únicas latino-americanas, além do motorista.

— Eu sinto muito pelo que o senhor teve que ouvir hoje – Falei para ele.

— Fica tranquila moça, em nenhum momento eu o tratei com falta de respeito e por isso, mesmo que ele reclame de mim, estou tranquilo, porque eu não respondi na mesma moeda.

Minha amiga comentou:

— Mas essa galera é muito metida, né? Só porque vem da Europa…

— É muito ruim mesmo, eles acham que são donos do mundo.

Ele nos ajudou com as mochilas e antes de nos despedirmos sorri:

— Sua filha é muito bonita!

Finalmente vi seus olhos se iluminarem depois de tão exaustiva viagem e compreendi que o amor nos ajuda a passar por muitas coisas:

— Vocês reparam nela lá perto da Hidroelétrica? Ela é muito esperta para a idade dela, sabe? E vai bem na escola, precisavam ver.

“Tomara que no futuro seja uma mulher de sabedoria como o pai”, pensei.

Fomos embora.

Vá gritar em seu país

Enquanto jantávamos aquela noite refleti sobre a humilhação que havíamos presenciado. O espanhol realmente se sentia superior ao motorista peruano. Mas por quê? Uma vez que deveria sentir vergonha e ajoelhar aos pés do povo andino por toda exploração que um processo de destruição cultural chamado de “colonização” provocou no local.

Vá gritar em seu país”, ficou ecoando na minha mente também na hora de dormir. Pensei sobre as motivações das pessoas em viajar. O que as leva a sair de seus países, às vezes tão longes? “Fazer um favor a quem vive de turismo”? Tá tudo errado. Eu sei e descubro a cada nova viagem mais motivações pessoais para continuar viajando e todas envolvem me conhecer e conhecer pessoas com culturas diferentes. Mas a menina loura com o namorado, o espanhol que gritava… por que estavam em uma viagem como aquela? Até entenderia se estivessem em hotéis 5 estrelas… Agora, com um pouco mais de experiência percebo que fui tola ao pensar que todo “mochileiro” fosse como projetava e via nos filmes.

Até hoje eu penso na menina se despedindo tão carinhosamente do pai, que faz, provavelmente várias vezes por semana, aquele trajeto que pode até custar sua vida qualquer dia desses. Penso na volta solitária para casa do motorista, apenas pensando no momento de encontrá-la.

Com ele, que nem deve se lembrar de mim, aprendi uma grande lição: não adianta gritar de volta, nem quando se está certo! Mas também não se deve deixar ninguém gritar com você na sua terra, no seu lar.

Não no meu país.

 

Fotos: shutterstock.com

Ana Beatriz Felicio

Ana Beatriz, ou Bia, tem 20 anos e mora no centro de São Paulo. É uma jornalista em formação, mas principalmente de coração. Curiosa, vive com a cabeça no mundo da lua. Gosta de conhecer pessoas e descobrir o que as motiva a acordar todos os dias. Apaixonada por novas aventuras, histórias, gostos e lugares.
É daquelas que está sempre viajando, quando não fisicamente, com a ajuda de algum livro de fantasia ou de um bom filme.

8 Comentários

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  • Adorei o post! Meu sangue ferveu daqui tbm! Tem muita gente boa no mundo, mas tem mto idiota tbm, é uma pena. Tomara que o mundo ensine babacas como esses, a terem mais humildade.

    • Oi Juciara! Eu fiquei com MUITA raiva mesmo! Acredito que de uma forma ou de outra as pessoas sempre caminham para aprenderem, tomara que com ele seja em breve 😉

  • Gostei muito do post! Tem pessoas maravilhosas espalhadas por aí, mas também tem aquelas que não aprenderão a ser “GENTE” nunca! Por outro lado, elas mostram essa face, na qual não devemos nos ver.

    • Obrigada Rosane! Você tem toda razão, algumas pessoas nos ensinam como NÃO ser. Que bom que gostou, abraço!

  • Nossa, parabéns pelo post! Chorei por aqui imaginando tudo isso. Muito triste mesmo! Por mais viajantes conscientes e menos turistas babacas por aí.

    • Obrigada Tamires! Foi uma situação muito chata mesmo. Como viajantes, temos que fazer a nossa parte e sempre ficar de olho nesse tipo de absurdo. Beijos!

  • Ana, meu emocionei com seu relato. Fico triste em ver como algumas pessoas são arrogantes, mas ver a humildade desse motorista me faz acreditar nas pessoas.
    Obrigada por compartilhar!

    • Que bom que gostou do texto Karina!
      Obrigada você pela leitura. Eu acredito mesmo que ainda exista muita gente boa por aí <3 beijos

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