Bolívia Crônica

São cholas, não tolas

Cholas em La Paz

Foi no caminhar ofegante pelas ruas de La Paz que me surpreendi com a Bolívia. Subir as ladeiras acima dos 3.700 metros de altitude para chegar ao hostel exigia paciência. O mochilão de 18 Kg nas costas fazia o cansaço ser multiplicado, fazendo-me constantemente parar por alguns minutos para retomar o fôlego. Pra quem vive praticamente no nível do mar, como eu, sofre mais. E eu sofria. Por isso aproveitava as paradas obrigatórias para observar a capital boliviana.

Notava os contrastes, as cores e os detalhes da cidade. Admirava o chão de paralelepípedo que compunha quase todas as ruas da capital mais alta do mundo. As calçadas estreitas também chamavam minha atenção, elas geravam tráfego intenso de pessoas, as quais pareciam não se abalar com a altitude. O ritmo frenético se repetia no trânsito, cuja trilha sonora era composta por buzinas, palavrões e roncos de motor de carro velho. O semáforo era apenas um enfeite. Os motoristas faziam as próprias regras: subiam ladeiras na contramão, passavam no sinal vermelho e dirigiam com uma mão no volante e a outra com o braço pra fora da janela. Sentia-me na Índia, mesmo sem nunca ter pisado lá.

Lojas com produtos pendurados pra fora das fachadas faziam parte do cenário: bolsas, mochilas, sacolas, roupas, tecidos, brinquedos. Uma confusão danada. E mesmo com toda a muvuca, um episódio fez me fez ficar imóvel: uma mulher carregando uma criança nas costas. “Que coisa mais linda e exótica!”, falei de imediato quando me deparei com a cena.

Não foi o simples lance de carregar uma criança nas costas que me paralisou. O fato é que não era uma mulher qualquer, era uma chola. De sapato baixo preto, saia rodada colorida e com um xale multicolorido repousado nos ombros ela conseguia contrastar com todo aquele universo em movimento. O cabelo dividido em duas tranças, juntamente com um chapéu-coco davam o toque final. Nas costas, uma criança embalada na mais profunda tranquilidade.

A cena foi rápida, mas suficiente para me fazer levantar inúmeros questionamentos acerca daquelas mulheres que são vistas com frequência na capital boliviana. E a primeira que vi, chocou-me. “Para que a tradição seja mantida, elas são vestidas desde pequenas com esses trajes típicos”, disse um funcionário boliviano do hostel no qual eu estava hospedado.

Do pondo de vista externo, segundo o próprio morador de La Paz, o que caracteriza uma chola é a roupa. Os trajes coloridos, juntamente com o chapéu-coco, é o que define esteticamente uma cholita – como também é chamada.

As cholas estão espalhadas pelas cidades e são vistas quase sempre trabalhando no comércio informal, vendendo artesanatos, flores, comidas, bugigangas e dezenas de outras coisas. Elas são, muitas vezes, as responsáveis pelo sustento da casa, além de terem a responsabilidade da criação dos filhos.

Percebi que andar pelas ruas de La Paz era uma oportunidade de mergulhar na cultura indígena. O aspecto exótico e extrovertido das cholas se limitam à aparência, uma vez que elas são tímidas e de difícil diálogo – pelo menos para os turistas que denotam evidente curiosidade. Outro grande empecilho de comunicação é o idioma: muitas falam apenas as línguas indígenas Quechua e Aymara. Elas são um paradoxo apaixonante, exóticas aos nossos olhos, mas demasiadamente discretas e tímidas para um contato.

As cholas não são um símbolo folclórico, tampouco figuras caricatas. Elas fazem parte da cultura camponesa e estão fortemente presentes nas cidades bolivianas. É impossível não notá-las. Engana-se quem pensa que a origem da vestimenta seja inca. A ascendência, na verdade, é espanhola e foi imposta por Carlos II em meados do século 18. Por isso, dizem que as cholas são símbolos do distanciamento em relação às origens indígenas – motivo que gera preconceito entre os próprios bolivianos. Porém, esse modo de se vestir foi aculturado por parte das mulheres indígenas, sendo motivo de orgulho para muitas delas, que fazem questão de preservar o aspecto exótico e propagar a tradição, fazendo delas símbolos da resistência boliviana.

Awayo é o nome dado ao xale – tecido que envolve e carrega a criança nas costas –, uma espécie de manta que complementa o traje das cholas. É feito lã de lhama, ovelha ou alpaca. São sempre multicoloridas. “Elas são tingidas com as cores que a terra produz e possuem vários tamanhos, essa aqui é de 1 metro”, disse uma ambulante da rua de La Paz. Segundo a vendedora, elas podem variar conforme o gosto da chola e maneira de utilização. O mais interessante é que além de transportar cargas, como alimentos, roupas, utensílios domésticos, o awayo é principalmente utilizado para transportar crianças nas costas, como na primeira cena que notei.

A diferença social entre os bolivianos é visível. O preconceito ainda é grande na Bolívia, mas já foi pior. Até as últimas décadas, os Aymaras e Quechuas eram proibidos de entrar em restaurantes, táxis e em diversos locais públicos. Por gerações foram impedidos de andar livremente pelas ruas de La Paz e arredores da capital. Foi no governo de Evo Morales que a transformação começou. Empossado no ano de 2006, o governo decretou, em 2011, a lei “Contra o racismo e toda forma de discriminação”, a qual vem favorecendo o processo de inclusão das cholas.

Um das cholas bolivianas
Chola boliviana

As cholitas estão passando por um rápido processo de aceitação social e já são vistas em universidades, bancos e até em cargos mais elevados. Existe até uma luta livre de cholas, denominada de Cholitas Luchadoras. Além disso, elas já são destaques em alguns esportes, como na escalada em alta montanha. Fatos inimagináveis de 10 ou 20 anos atrás.

Ao chegar no hostel, percebi que viajar é ótimo para quem tem subidas de tirar o fôlego pelo caminho. E as cholas? Acho que já sofreram e foram julgadas demais. Elas só querem ser cholas.

Rafael Kosoniscs

Sou jornalista e publicitário, tenho 36 anos e viajo de mochila nas costas há 12 invernos. Tenho a mochilagem e o montanhismo como paixões. Vou publicar meu primeiro livro este ano – e você já está convidado(a) para o lançamento. Fique de olhos nas redes para não perder, ok? Siga: @seumochilao | @rafaelkosoniscs

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